Imagine o Rio de Janeiro, uma cidade fundada numa uma baía nas décadas de 1830 e 1850 - a parte velha da cidade com suas ruas estreitas e cheias, suas igrejas paroquiais e seus chafarizes - transformados em lugares de ajuntamento de pobres que se encontravam aos gritos e gargalhadas.
Nesse cenário, Henriqueta Maria da Conceição trabalhava como quitandeira, ou seja, uma vendedora ambulante de frutas e verduras. Ela conhecia bem a cidade e se apropriava de seus espaços.
Imagen: Visconde de Villiers de L'Isle Adam, Planta da Cidade do Rio de Janeiro, 1850. Biblioteca Nacional, Brasil.
Uma africana forçadamente retirada de seu continente pela violência do tráfico de escravo e transportada através do Atlântico até a Bahia, Henriqueta foi, ainda embarcada ao sul, onde, no Rio de Janeiro, Rosa Maria de Jesus a comprou e a colocou para trabalhar nas ruas, permitindo-a alugar seus próprios serviços como escrava ao ganho.
Por volta de 1853, Henriqueta tinha poupado uma quantia suficiente de seus ganhos, além do dinheiro semanal que tinha que pagar a sua proprietária, para comprar sua liberdade. Dois anos depois, ela se casou com Rufino Maria Baleta, um africano, também liberto e que vivia como peixeiro. Seu casamento rapidamente se deteriorou em uma relação violenta e abusiva por parte de Rufino e terminou em divórcio em 1857, quando a Igreja deu a Henriqueta uma separação eclesiástica definitiva.
Henriqueta identificava sua zona de venda como sendo as ruas da freguesia de Santa Rita e adiante.
Mapa: F. C. de Campos, Planta da Cidade do Rio de Janeiro, 1858, Library of Congress, georeferenciado e com camadas adicionais de imagineRio. Este e os mais mapas foram feitos em ArcGIS com dados de imagineRio.
Da rua do Fogo ela podia ir a leste ou oeste, contornando o Morro da Conceição.
Ela podia, ainda, subir a ladeira que dava no topo do morro e descer em direção ao mar. Do alto, ela tinha uma visão privilegiada da baía.
Imagen: "Vue de Rio de Janeiro, prise de la montagne de la Conceição," 18 Brasiliana Iconográfica.
Ela poderia vender suas mercadorias ao longo da praia do Valongo, que, no passado, tinha sido uma área de desembarque de escravos vindos da África, onde ficavam até que pudessem ser entregues aos seus proprietários ou vendidos para novos senhores. Um cemitério próximo se tornou o lugar de enterramentos dos africanos oriundos da África, que morriam em grande número das doenças contraídas durante a travessia Atlântica. Outra opção para Henriqueta era pegar a rua da Prainha que segue em direção à baía e ao cais, passando por entre os morros da Conceição e de São Bento. No passado, os depósitos construidos nas docas tinham servido para estocar sal, o qual os brasileiros vendiam ilegalmente com as colônias espanholas do Rio da Prata. Por volta de 1850, o café passou a ser guardado nesses armazéns se tornando o produto dominante no comércio internacional.
O limite oriental do território de Henriqueta era o Morro do Castelo.
O morro oferecia uma vista ampla da entrada da baía e do mar aberto mais adiante, bem como uma vista panorâmica da cidade velha densamente construída. No passado, o Morro do Castelo fora um local de um forte contra os interesses francêses e uma base estratégica para a colônia portuguesa, tornando-se depois, em um Colégio Jesuíta até virar a sede do governo. Porém, isso ocorreu no passado. Henriqueta o conheceu mais como um morro de casas degradadas, onde as lavadeiras estendiam as roupas nos arbustos para secar. As habitações ficavam às margens da ladeira, que levavam ao topo da colina. Eventualmente este morro foi destruído para permitir que essa parte da cidade fosse construída, mas isso ocorreria bem depois da época de Henriqueta.
Imagen: A. Martinet, "Rio de Janeiro: Vista tirado do morro do Castello,"1852. Biblioteca Nacional, Brasil.
O dia de Henriqueta começava cedo. Como escrava que era, vivia descalça e passou a usar sandálias apenas quando se tornou liberta. Ela caminhava do lugar que vivia, no número 133 da rua do Fogo, até o Mercado Municipal no cais ao lado norte do Largo do Paço. Sua reputação como mulher que sempre pagava suas dívidas a permitia comprar fiado dos vendedores do mercado que se tornaram seus fornecedores. Ali ela fazia sua primeira parada.
Imagen: Detalha, Guia e Plano da cidade do Rio de Janeiro, 1858, Biblioteca Nacional, Brasil.
Imagen: F. R. Moreaux, Praça do Mercado. Exterior, Biblioteca Nacional, Brasil.
Imagen: F. R. Moreaux, Praça do Mercado, Interior, Biblioteca Nacional, Brasil.
Seu cesto agora estava pesado com a quitanda que ela esperava vender, e, com ele, se deslocava para seus lugares favoritos de vendas onde seus clientes sabiam que a encontrariam. As fontes históricas não dizem precisamente quais ruas ela usava, mas é provável que andasse pela rua Direita em direção ao Rosário, vendendo enquanto continuava até o pátio da igreja do Rosário.
A competição era acirrada. Só na sua vizinhança contava-se até 60 vendedores ambulantes, e, na sua rua, ela dividia as vendas com pelo menos outras duas pessoas. Mais da metade dos ambulantes eram negros e 16 dos 27 africanos eram mulheres.
Ainda outras quitandeiras trabalhavam em barracas permanentes identificadas por rua e número, como Maria Perpétua que vendia verduras no número 38 da rua do Livramento.
Imagen: Pieter Gotfred Bertichen, "Barraca de Quitandera," in O Brasil Pitoresco e Monumental: O Rio de Janeiro e seus arrabaldes, 1856. Brasiliana Iconográfica.
Esses vendedores tiravam licenças concedidas pela câmara das quais Henriqueta podia pagar apenas pela mais barata delas, requerida para vendas ambulante.
Imagen: E. Landseer, "Figures at Rio," 1815-1826. Brasiliana Iconografica.
Antes da época de Henriqueta, quando o Brasil ainda era uma colônia portuguesa, o então vice-rei Marquês do Lavradio tinha estabelecido o primeiro depósito de escravos na praia do Valongo para remover da vista dos transeuntes os escravos, que, com frequência, estavam nus, vivendo e sendo vendidos nas ruas. Esse depósito humano ao longo da baía encorajou outros mercadores a construir seus armazéns também no Valongo.
Por volta de 1808, as questões de higiene tinham provocado o fechamento definitivo dos depósitos de cativos, deixando a cargo dos comerciantes de escravos as obrigações com alojamento, vestuário e alimentação daqueles indivíduos que compravam e vendiam. O que tinha ocorrido em virtude da preocupação com a ordem pública e a higiene se tornou, pela lei de 1831, uma responsabilidade particular dos traficantes de escravos.
No início da década de 1850, quando Henriqueta estava fazendo economia para comprar sua liberdade, o comércio Atlântico de escravos havia se encerrado e o Valongo comercializava mercadorias comuns. Contudo, o tráfico de cativos dentro do Brasil florescia. Da década de 1850 aos anos 1880, dezenas de comerciantes compravam, vendiam e alugavam escravos em lojas espalhadas ao longo de toda a parte velha da cidade, lugares por onde Henriqueta passava todos os dias.
Henriqueta considerava ter ela mesma a propriedade de um escravo e até mesmo combinou com um negociante de escravos para trazer uma escrava para sua casa para que ela a avaliasse, mas ela logo reconheceu que o custo era muito maior do que ela poderia pagar.
Imagen: C. Landseer, "Market Slaves, 1825-1825. Brasiliana Iconográfica.
Henriqueta também anunciava suas mercadorias na rua Direita, uma rua larga e comercial, que se estendia do norte do morro do Castelo até o morro de São Bento, tornando-a a maior artéria na circulação de pessoas e mercadorias. A rua Direita era paralela e a leste da rua do Fogo, onde Henriqueta vivia, passava pelo cais, pela Alfândega, e era o caminho dos pescadores que pescavam na baía e vendiam seus produtos num mercado próximo. A rua do Fogo, com sentido de norte a sul, começava no morro da Conceição e terminava há uma curta distância do morro do Santo Antônio perto da Igreja do Rosário. Entre as duas ruas, se encontrava a rua da Quitanda, nomeada pela abundância de vendedores ambulantes que comercializavam botões, linhas e pedaços de tecidos, mas que ficava fora da zona de vendas de Henriqueta.
Na Alfândega, carros de boi misturados a homens escravizados carregavam sacas de café, de 60 quilos cada, levando e trazendo-os do cais para os depósitos até que as juntas de seus quadris e joelhos se exaurissem. Suas cantorias marcavam o ritmo do trabalho, oferecendo uma distração. Da Alfândega, o café era eventualmente carregado para os navios destinados ao mercado europeu. Aquele mesmo mercado europeu enviava ao Brasil tecidos finos, lustres de cristais, maquinário e ocasionalmente, um piano.
Imagen: F. G. Briggs, "Carregadores de Cafe," 1845. Biblioteca Nacional, Brasil.
Era uma cena de multidão, movimentada e barulhenta, em que diversos tipos de mercadoria circulavam por um variedade de comerciantes.
Imagen: P. G. Bertichen, "Alfandega," 1856. Brasiliana Iconográfica.
Enquanto a rua Direita tinha em sua atmosfera um vigoroso ar masculino, o Largo do Rosário, em frente à igreja do Rosário, pertencia mais às mulheres e suas diversas trocas animadas.
Animosidades entre quitandeiras provocavam divisões que elas próprias perpetuavam com regras não escritas, mas que cumpriam rigorosamente, aquilo que Clifford Geertz chamava de "conhecimento local", um entendimento invisível para as pessoas de fora, mas intensamente real para os envolvidos. Eles designavam vendedores africanos para o pátio em torno da igreja do Rosário e transformavam o Campo de Santana no lugar de venda para crioulas ou negras nascidas no Brasil.
Como uma escrava da África que somente posteriormente se tornou liberta, Henriqueta reclamava direitos de venda no largo da igreja do Rosário.
Imagen: F. R. Moreaux, "Largo do Rozário," 1845. Biblioteca Nacional Brasil.
Às vezes, a disputa por território se tornava tão tensa que um vez, em 1854, um proprietário de escravo, achasse necessário intervir e resgatar seu escravo de ganho da prisão mesmo que todos concordassem que uma baiana livre tinha começado a confusão ao invadir o território africano. Demarcações espaciais eram importantes nesta sociedade de vendedores de rua densamente estabelecida e com relações de muita proximidade, além de extremamente competitiva. Cada lado exigia que o outro seguisse as regras.
Imagen: W. Loeillot, "O chafariz do Campo: tomado da Igreja de Sª Anna = Fontaine du Campo : depuis l'eglise de Ste. Anne," 1835. Biblioteca Nacional Brasil.
A Igreja do Rosário figurava proeminentemente entre as diversas igrejas nas quais os escravos e negros livres mantinham um altar para seu santo padroeiro. As irmandades, com membros e oficiais, homens e mulheres, ofereciam suas devoções à Nossa Senhora do Rosário, inserindo os negros em uma rede de intercâmbios que oferecia identidade e influência em um mundo no qual, do contrário, teria-lhes sido retirado qualquer forma de poder.
Alguns irmandades arrecadavam dinheiro para ajudar na compra da liberdade de um membro escravizado ou para financiar funerais indispensáveis e, por vezes, extravagantes adornados com velas, flores e missas rezadas em memória das almas dos mortos. Desse modo, Henriqueta tinha muitas ocasiões para visitar o Largo do Rosário.
Imagen: Jean Baptiste Debret, "Qûete pour l'entretien de l'église du Rosário" in Voyage pittoresque et historique au Brésil, depuis 1816 jusqu'en 1831 Paris : Firmin Didot Frères, 1834-1839, v. 3, pl. 30. Brasiliana Iconográfica.
O Rio de Janeiro ocupa uma península entalhada que se estende a leste em direção à parte mais larga da baía da Guanabara. Ao norte das colinas da cidade, despontam as montanhas e, ao sul, as estreitas faixas de terra se alongam em direção ao mar aberto do Atlântico. A oeste, correm dos altos despenhadeiros de granito a água doce que alimenta os córregos e que antigamente abastecia os residentes da cidade. Mas a esplendorosa cidade circundada pela baía tem também suas imperfeições. Construída sobre um manguezal pantanoso, a perfuração de poços privados era impossível, deixando a cidade e sua crescente população sem uma fonte sustentável de água doce.
O abastecimento da água doce se tornou a maior preocupação dos governantes da cidade assim como de quase todos seus habitantes. Finalmente, no século XVIII, a água do rio Carioca foi canalizada por uma longa distância através de um terreno íngreme e montanhoso e levada em um aqueduto elevadíssimo até a fonte do Largo da Carioca. De lá, por meio de tubulações subterrâneas, a água era distribuída pelas fontes da cidade.
A fonte pública mais antiga do Rio de Janeiro ficava ao pé do Morro de Santo Antônio, não muito longe da praça em frente à Igreja do Rosário. A fonte da Carioca começou a funcionar na década de 1720. Na época de Henriqueta, a fonte já havia sido reconstruída duas vezes e tinha se tornado a fonte mais desordenada e barulhenta do Rio.
Das suas 36 bicas, os escravos abasteciam seus baldes para levar para casa, e lá na fonte eles lavavam roupas, até mesmo aquelas que estavam vestindo.
Imagen: E. Hildebrandt, "Brunnen in Rio de Janeiro," 1844. Staatliche Museen zu Berlin.
Quando o aqueduto da Carioca não podia mais atender a crescente demanda por água, um segundo aqueduto canalizou a água do Rio Maracanã, esta vinda de uma magnífica cachoeira profunda da floresta da Tijuca, nos arredores da cidade.
Mapa: A. Metcalf, Aqueducts and Fountains, 1830. Feito em ArcGIS com dados de imagineRio, 1830.
De lá, a água se movia em tubulações subterrâneas para o Campo de Santana para jorrar em torneiras de bronze no chafariz das lavadeiras.
Imagen: W. Loeillot, Detalhe de "O chafariz do Campo: tomado da Igreja de Sª Anna = Fontaine du Campo : depuis l'eglise de Ste. Anne," 1835. Biblioteca Nacional Brasil.
As fontes, uma parte importante da vida cotidiana do Rio de Janeiro, não apenas supriam água para os habitantes mas se tornaram lugares de encontro de escravos, negros livres e libertos. Escravos domésticos aproveitavam estes momentos distantes de suas senhoras vigilantes para prosear com amigos, flertar ou discutir com amantes. Henriqueta devia buscar sua própria água diariamente, provavelmente na fonte de Santa Rita, a mais próxima de sua casa. A igreja e a paróquia de Santa Rita datavam do início do século XVIII, mas a fonte foi construída na época de Henriqueta, sendo inaugurada em 1840.
Imagen: E. Hildebrandt, "Kirche St. Rita. Rio de Janeiro," 1844. Staatliche Museen zu Berlin.
Os espaços também adquiriam significados pessoais e privados. A Igreja paroquial de Santa Rita ao pé do Morro da Conceição tinha um significado especial para Henriqueta, alem de ser um lugar cheio de pessoas, barulhento e acolhedor para aqueles que faziam suas vidas nas ruas. Ela e Rufino se casaram nessa Igreja, logo depois de Henriqueta ter comprado sua liberdade e então, segundo ela, ter comprado a liberdade de Rufino, informação refutada por ele. Ela se recusava a casar-se antes de se tornar liberta. Agora, a cada vez que passava pela igreja, ela podia se lembrar de seu casamento e da carruagem que havia contratado para deixar e buscá-los na Igreja e também como sua união com Rufino tinha se tornado amarga.
Ela conhecia as ruas como sendo lugares de trabalho e por causa dos amigos que nelas viviam. Virginia Maria da Conceição, brasileira nata e costureira que agora vivia na rua da Alfândega tinha uma vez alugado um quarto na casa da Henriqueta.
Henriqueta também podia se lembrar do tempo da rua Direita quando brigou com um cliente, um homem branco, em plena luz do dia, com todo mundo assistindo, sobre uma lavagem de roupa que ela fez para ele e sobre uma camisa rasgada que ela alegava ter retornado. Henriqueta terminou na cadeia até que Rufino chegou e persuadiu o guarda de que ela era uma respeitável mulher casada e que, portanto, deveria ser solta.
Um encontro mais feliz foi com Antônio Godinho, um amigo que junto com sua esposa visitavam com frequência Rufino e Henriqueta, e que tinha uma loja na rua Larga de São Joaquim, número 114, onde Henriqueta por vezes aparecia como freguesa. Cerca de dois meses antes, ela havia comprado pano da costa, um tecido listrado que era muito apreciado por africanas Minas e exportado em grandes quantidades para o Brasil. Henriqueta tinha ido à loja de Antônio para pegar sua encomenda. Pegou o pano, envolveu suas costas e saiu da loja acompanhada por sua amiga Joaquina.
Imagen: E. Hildebrandt, "Rio de Janeiro, Kirche Santa Rita," 1844. Staatliche Museen zu Berlin.
A rua do Cano, nomeada em razão da tubulação subterrânea que carregava água da fonte da Carioca para a fonte do Largo do Paço, figurava de forma proeminente nas idas e vindas da vida social de Henriqueta, como a rua na qual sua amiga próxima Joaquina Malthides do Espírito Santo vivia no número 209.
A casa de Joaquina se tornou refúgio quando, durante o processo de divórcio, a corte judicial definiu que Henriqueta tinha que ser ali "depositada" por segurança, de modo a evitar mais ataques de Rufino.
Os significados dos espaços mudavam de acordo com a hora do dia. Comportamentos que eram apropriados para o período da manhã podiam não ser tolerados à tarde ou ser aceitáveis no cair do dia, mas jamais à noite.
Henriqueta sabia que as vendas da quitanda terminavam ao meio dia. As ordenanças da cidade decretavam a proibição de quitandeiras venderem frutas e vegetais murchos sob o calor da tarde. Restrições similares eram aplicadas na venda de carne, peixe e pão - todas essas ocupações deveriam, portanto, começar bem cedo da manhã.
Imagen: A. H. Wilhelm, "Westseite der Einfhart in die Bau von Rio de Janeiro den 5ten September 1842," 1847. Brasiliana Iconográfica.
De tarde as ruas deveriam estar vazias de vendedores. Seus residentes se retiravam para os interiores, em cômodos fechados por venezianas e mais frescos. No fim da tarde, mas jamais à noite, mulheres de boas famílias (como elas mesmas se viam) se deliciavam com doces e tomavam chás em uma das casas de chá da moda ou caminhavam no Passeio Público, sombreado por galhos de árvores e acompanhadas pela presença protetora de uma mucama.
Quando o dia se apagava e as lâmpadas a gás nos postes se ascendiam, uma luz embotada varria a escuridão e o comportamento social ficava ainda mais restrita.
A clientela das casas de chá tornava-se mais extravagante. Jovens homens elegantemente vestidos surgiam em companhia de jovens mulheres de reputação duvidosa. Esse ambiente deixava de ser um lugar acolhedor para mulheres que se viam como sendo de boa família. Durante o dia, transeuntes raramente notavam um comerciante que carregasse suas ferramentas de trabalho em uma cinta larga de couro, mas com o cair da noite e o som da "Ave Maria" do mosteiro de São Bento, eles veriam aquelas mesmas ferramentas como armas potencialmente perigosas e elas se tornavam, subitamente, proibidas à noite. Um escravo nas ruas depois das 10 horas da noite só era permitido se carregasse uma declaração com a permissão do dono e apenas se estivesse à serviço do mesmo.
Uma mulher sozinha na rua à noite arriscava sua reputação de mulher honesta, e poderia ser tomada, ao contrário, por uma prostituta comum. As prostitutas de verdade se inclinavam nas janelas abertas de forma provocante, mas estavam levemente mais protegidas, enquanto algumas escravas se moviam rapidamente nas carruagens para ir a encontros marcados. Durante o dia, essas mesmas mulheres iam e vinham como lavadeiras, carregadoras de água ou domésticas. As prostitutas eram, em sua maioria, negras e escravas, um número extraordinário de suas donas eram também mulheres, frequentemente, imigrantes portuguesas, não casadas e elas mesmas pobres, que viviam em grande quantidade na rua do Hospício, a qual ligava a chique rua dos Ourives ao Campo de Santana. A mesma área que Henriqueta cruzava todos os dias.
O mundo noturno de Henriqueta também mudava, tornando-se de uma só vez mais expressivo, mais restrito e mais secreto. Para onde ela ia? E se ela ignorasse o toque de recolher e voltasse para casa depois das 10 horas da noite?
Eram as danças, que ela e sua amiga Joaquina frequentavam, cerimônias religiosas oferecida aos espíritos africanos chamados de Orixás, divindades multifacetadas que de uma só vez representavam a energia vital e as forças naturais como relâmpagos e ancestrais sagrados? Certamente essa dança era uma "ritual performance". As mulheres dançavam circulando o salão, enquanto os tambores rufavam chamando e respondendo, até que o Orixá "baixasse" e um dançarino rodopiava para fora da roda, tremendo em um transe. Talvez seja mais provável que as reuniões em que Rufino, o marido de Henriqueta, a acusava de ter participado e que costumava depreciar com deboches fossem entretenimentos de origem africana, como o batuque ou o lundu - danças trazidas por escravos de Angola e do Congo. Aqui, os cantos e tambores convidavam africanos para as ruas e praias para dançar em celebração. Esses eram momentos para Henriqueta - e para todos africanos - se arrumarem e serem vistos.
Imagen: A. Earle. "Negro fandango scene, Campo St. Anna, Rio de Janeiro," ca. 1822. PIC Solander Box B5 #T136 NK12/98, National Library of Australia.
Rufino se preocupava que sua bela esposa caísse na prostituição. Ao menos era assim que ele justificava sua violência contra sua consorte - para evitar sua queda no vício. Alegando violência extrema, Henriqueta peticionou para a corte eclesiástica e conquistou a separação, a qual permitiu, por sua vez, a divisão da propriedade do casal na corte civil - algo de certo sem significado uma vez que eles não tinham posses. Mas também acabou por liberá-la de futuras responsabilidades com as dívidas do marido, o que sob a lei de propriedade comunal a transformava em fiadora responsável pelos gastos dele. Uma vez separados, o que ela ganhava lhe pertenceria e qualquer dívida dele seria apenas problema dele. Daí em diante, ela prosperou e então, novamente foi capaz de juntar dinheiro. Por volta de 1861, ela tinha licenças registradas para o uso de duas barracas de mercados permanentes no Largo do Rosário.
Acompanha Henriqueta em imagineRio, abaixo.
Estranhamente, historiadores levaram muito tempo, muito mais do que antropólogos e arqueólogos por exemplo, para utilizar o espaço como uma categoria de análise, adicionando-a as demais como classe, gênero e raça. "Espaço" é algo que criamos, um atalho que nos leva a um conjunto de significados, uma abstração, enquanto um "lugar" se refere a localizações reais onde algo aconteceu, onde as pessoas constroem vínculos, se investem deles e por suas ações conferem sentidos a ele. Aquelas "redes de significados" Geertizianas que nós mesmo tecemos requerem não apenas explicações de causa e efeito, mas interpretação - o desenrolar do significado.
Os Cariocas usavam as categorias de casa e rua para distinguir entre o que era uma zona de segurança para mulheres e o que era uma zona perigosa. Essas eram categorias naturais, não fruto da criação ou impostas por historiadores às pessoas do passado. Eram elas próprias que as construíram. A casa era entendida como um espaço protegido, ordenado, em contraste com a turbulência, a sujeira, os perigos da rua - até, que, começamos a olhar para a questão a partir da perspectiva de uma empregada doméstica ou escrava. Ela conhecia a casa como um lugar confinador e potencialmente perigoso onde ela era sempre vigiada, frequentemente castigada ou até mesmo violentada, onde vivia separada de sua própria família. Para ela, é provável que a rua representasse o lugar da liberdade, de conversas grosseiras e comportamentos rudes que lhes pareciam tão triviais dado os esperados encontros com seus pares nas ruas, nas fontes, nas praças onde ela buscava amizades, risos e até amor. As lutas e hostilidades, os insultos, também parte da vida da rua, ocorriam ao menos entre iguais. A dona de casa, ao contrário, evitava esses lugares ameaçadores e barulhentos ou - quando necessário - levava a sua empregada como uma forma de proteção social. As casas dessas mulheres com riqueza e reputação eram adicionalmente protegidas da rua por muros ou densos jardins. A casa e a rua eram os nortes da vida doméstica e urbana, mas carregavam significados bem diversos e por vezes até opostos para mulheres de diferentes condições sociais.
Traçar a rota de Henriqueta ao longo do centro velho do Rio de Janeiro, em seu cotidiano de trabalho, é um convite a ver os espaços da cidade a partir do ponto de vista da protagonista, para desvendar quais significados ela e outros vendedores de rua davam aos lugares que definiam suas experiências. Como nós vimos, os vendedores nem sempre concordavam entre si e poderiam ser rudes uns com os outros no trato cotidiano. Todavia, as categorias sociais - fossem entre homens ou mulheres, jovens ou velhos, de origem étnica ou entre escravos ou livres - filtravam suas experiências acerca da materialidade da cidade e dos significados investidos em lugares específicos. Ao longo do tempo, os significados mudaram e os espaços foram sendo redefinidos. Embora tudo isso pareça óbvio quando enunciado, apenas recentemente os historiadores começaram a usar o espaço como uma categoria de análise para expandir nosso entendimento histórico. Portanto, o mundo de Henriqueta é um exemplo pequeno mas muito esclarecedor, que se torna digno de atenção.
Imagen: E. Hildebrandt, Bucht von Rio de Janeiro, SMB-digital
Sandra Lauderdale Graham escreveu o texto "O cotidiano de Henriqueta nas ruas do Rio de Janeiro" e sua tradução para o português foi feita por Ludmila de Souza Maia. Alida Christine Metcalf criou o Story Map usando o "Cascade template" do ESRI. Com poucas exceções, as imagens são das ricas coleções da Biblioteca Nacional Digital Brasil, Brasiliana Iconográfica e Brasiliana Fotográfica. As imagens em aquarela da coleção Eduard Hildebrant do museu Staatliche de Berlim aparecem aqui com permissão assim como a aquarela da coleção Augustes Earle da Biblioteca Nacional da Austrália.
Story Maps é parte do projeto imagineRio da Rice University. Ao oferecer um mapa temporal preciso do Rio de Janeiro desde o século XVI até o presente, imagineRio permite ao visitante ver a vida no Rio de Janeiro como aconteceu e como foi imaginada. Os mapas históricos do imagineRio, os planos urbanos, e imagens são georreferenciadas e geolocalizadas, permitindo o exame sem precedentes dos espaços da cidade ao longo do tempo.
Direitos autorais: todos os direitos autorais do texto "O cotidiano de Henriqueta nas ruas do Rio de Janeiro" pertencem a Sandra Lauderdale Graham e não podem ser reproduzidos sem sua permissão. Todos os direitos dos mapas criados para esse Story Map pertencem a Alida C. Metcalf e não podem ser reproduzidos sem sua permissão. O usuário deve procurar por mais informações sobre os direitos das imagens nos arquivos e bibliotecas que as possuem.
Os detalhes da história de Henriqueta são tirados de quatro processos judiciais: Juízo Eclesiástico, Henriqueta Maria da Conceição, preta Mina, contra Rufino Maria Baleta, preto Mina; e Juízo Eclesiástico, Rufino Maria Baleta, preto Mina, justificante, contra Henriqueta Maria da Conceição, preta Mina, justificada, Justificação para Remoção do Depósito, ambos em Libelo de Divórcio, Rio de Janeiro, 1856, Arquivo da Cúria Metropolitana, Rio de Janeiro, Libelo de Divórcio, 1174, Caixa 68. O terceiro caso é: Juízo da 2a Vara Cível, Divórcio, Rufino José Maria Baleta, réu, Rio de Janeiro, 1857, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Seção do Poder Judiciário, Maço 877, no. 686. E o quarto é: Juízo Municipal da 3a Vara Cível, Inventário, Rofino Joze Maria Baleta e Henriqueta Maria da Conceição, Rio de Janeiro, 1858, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, Seção do Poder Judiciário, Caixa 300, no. 828, Gal. A.
Além disso, há duas cartas de liberdade, que são: Carta de Liberdade que dá Roza Maria de Jesus à Henriqueta, 21 de Julho 1853, 2° Ofício de Notas, Rio de Janeiro, Registro Geral, Livro 86 (03/05/1853), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, fl. 92v; Carta de Liberdade conferida por José Maria Warleta a Rufino, 2 de abril 1854, 2° Ofício de Notas, Rio de Janeiro, Registro Geral, Livro 87 (16/01/1854 - 07/08/1854), Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, fl. 79.
Seu casamento é registrado na igreja paroquial de Santa Rita: Rufino [Maria Baleta] e Henriqueta [Maria da Conceição], Rio de Janeiro, 16 de janeiro 1855, Casamentos, Freguezia de Santa Rita, Livro 5 (1852-1860), Arquivo da Cúria Metropolitana, Rio de Janeiro, AP552, fls. 40v-41.
Especialmente útil para a paróquia de Santa Rita é: Rellação Nominal das Cazas de Negocios da Freguesia de Santa Rita pertencente ao anno de 1841, Estatística da Freguesia de Santa Rita, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Códice 43-1-42.
Para o caso de mulheres lutando por territórios de venda, ver: Corte de Apelação, Processo Crime no 583, Amélia, Mina, escrava de Domingos José Dias Guerreiro, ré, Rio de Janeiro, 1854, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1854, Maço 84, Gal. C, fls. 1, 2, 2v, 4, 5v, 7, 8v, 10v, 15-16v, 17, 19, 39; Carlos Eugênio Líbano Soares discute esse caso em detalhe em: “‘A nação’ da mercancia: Condição feminina e as africanas da Costa da Mina, 1835- 1900,” em Labirinto das nações: Africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX, organizado por Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Libano Soares e Flávio dos Santos Gomes (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003), 210-212.
Para um exemplo dos regulamentos de uma irmandade, ver Compromisso da Irmandade dos Santos Elesbão e Ephigenia desta Corte do Rio de Janeiro, o qual foi feito em 1740 [panfleto] (Rio de Janeiro: 1917), 3, 10-11, 14, ACM-RJ, Associações Religiosas, no. 198; Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000), 180-189; Mary C. Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1800-1850 (Princeton: Princeton University Press, 1987), 82-85; Mariza de Carvalho Soares, “O império de Santo Elesbão na cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII”, Topoi 4 (2002), 59-83.
Para um quadro mais completo da vida de Henriqueta, ver Sandra Lauderdale Graham, “Being Yoruba in Nineteenth-Century Rio de Janeiro,” Slavery and Abolition — A Journal of Slavery and Post-Slave Studies, Vol. 32, No. 1 (2011): 1-26; e Sandra Lauderdale Graham, “Honor among Slaves,” in The Faces of Honor: Sex, Shame, and Violence in Colonial Latin America, organizado por Lyman Johnson e Sonya Lipsett-Rivera (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1998), 201-228. Recentemente, Shawn William Miller escreveu sobre outra Henriqueta, possivelmente uma vendedora de rua ou uma escrava doméstica, The Street Is Ours: Community, the Car, and the Nature of Public Space in Rio de Janeiro (Cambridge: Cambridge University Press, 2018), 21-23, a quem não se deve confundir com a Henriqueta dessa história. O livro de Miller é um ótimo exemplo de um historiador que usa o espaço como uma categoria de análise. O Stanford Spatial History Project, coordenado por Zephyr Frank, foi pioneiro na história espacial na área de América Latina e continua a ser um lugar estimulante para pesquisas e produções escritas inovadoras. Ver Zephyr Frank, Dutra’s World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro (Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004); e Reading Rio de Janeiro: Literature and Society in the Nineteenth Century (Stanford: Stanford University Press, 2016). Para o uso das categorias casa e rua, ver Sandra Lauderdale Graham, House and Street: The Domestic World of Servants and Masters in Nineteenth-Century Rio de Janeiro (Cambridge: Cambridge University Press, 1988 e Austin: University of Texas Press, 1992). Keith Basso oferece uma impressionante demonstração da exploração etnográfica do ato de nomear lugares feita pelos índios Apache no Arizona, Wisdom Sits in Places: Landscape and Language among the Western Apache (Albuquerque: University of New Mexico Press, 1996). Para o conceito de Clifford Geertz de "conhecimento local", ver Geertz, Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology (New York: Basic Books, 1983). Sobre o uso e distribuição da água no Rio de Janeiro ver Alida C. Metcalf “Water and Social Space: Using georeferenced maps and geocoded images to enrich the history of Rio de Janeiro’s fountains,” e-Perimetron 9:3 (2014): 123-145 e Alida C. Metcalf e Sean Morey Smith, “Mapping the Maracanã: Reconstructing the Route of Rio de Janeiro’s Second Major Aqueduct,” e-perimetron 13:1 (2018) : 1-22.
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